domingo, 20 de julho de 2014

O tratado das Categorias de Aristóteles: as duas ambiguidades apontadas e a possível forma de interpretá-las

Aristóteles
   

O tratado das Categorias de Aristóteles é cerceado por diversas especulações, entre elas podemos citar a dificuldade dos estudiosos de compreender a sua inclusão no Organón, ou seja, o conjunto aristotélico de obras lógicas, estando entre elas, por exemplo, Os Primeiros e os Segundos Analíticos, Os Tópicos e as Refutações Sofísticas. A dificuldade dessa compreensão está no fato de o Categorias apresentar uma doutrina mais metafísica do que lógica, vide a discussão acerca da substância, no capítulo 5, e de suas qualidades. Outra discussão é acerca de sua autenticidade, visto que alguns comentadores o consideram uma obra apócrifa, Suzanne Mansion aponta essa opinião em um artigo. Já enquanto outros consideram o tratado uma obra de juventude. Conforme apresentado no título, discutirei as duas ambiguidades que têm movido as investigações de pesquisadores na busca de uma compreensão das mesmas. Mas quais são essas tais “ambiguidades”, quais são as prováveis causas delas? E quais são as suas devidas implicações?


Bem, vamos às ambiguidades: a 1ª é a falta de certeza se Aristóteles está a classificar símbolos ou o que esses símbolos representam: palavras ou, em um sentido genérico, coisas e, a 2ª, é a incerteza se o estagirita está a classificar predicados ou termos em geral, incluindo sujeitos. Após discutir o que são homônimos, parônimos e sinônimos, no capítulo 5, na discussão da substância, dividida em primeira, sujeita de predicações, e segunda, as predicações, de acordo com o trecho:



Substância- aquilo a que chamamos substância de modo mais próprio, primeiro e principal- é aquilo que nem é dito de algum sujeito nem existe em algum sujeito, como, por exemplo, um certo homem ou um certo cavalo. Chamam-se substâncias segundas as espécies a que as coisas primeiramente chamadas substâncias pertencem e também os gêneros dessas espécies. Por exemplo, um certo homem pertence à espécie homem, e animal é o gênero da espécie; por conseguinte, homem e animal são chamados substâncias segundas”.

Categorias, 4 (1b25-2ª4)

O que podemos disso inferir? A que ele se refere, de fato? Às palavras ou às coisas que elas representam? Não podemos inferir nenhuma conclusão absoluta de imediato, visto que não sabemos se Aristóteles está se referindo, em um contexto não técnico, a uma expressão linguística ou a um atributo. E, de mesmo modo, a forma como o filósofo apresenta a sua doutrina das expressões simples e compostas, dizendo: “Expressões que de modo nenhum são compostas significam substâncias” (Categorias, 4 1b25) dá a entender, por meio deste momento, que ele está a pensar em símbolos. Voltando a escrever acerca do sujeito ao diferenciar as formas verbais simples e compostas: ser e estar.



Mas, Daniel, quais são as causas das tais ambiguidades que você fala?


A certeza é quase certa de que Aristóteles estava ciente do caráter ambíguo da sua obra que levantou as dificuldades entre os seus comentadores. Lógicos e filósofos apontam dois dispositivos da linguagem, que pela ausência na língua grega, tenha gerado o duplo sentido: o uso das aspas e a livre invenção de substantivos abstratos: está o estagirita a dizer que “homem” é predicado de indivíduo ou que “humanidade” é predicado de indivíduo? Esta deficiência da língua grega já tinha originado confusão na filosofia de Platão e invadiu as traduções latinas das obras de Aristóteles e, aludindo à filosofia medieval, ocasionou problemas quando Tomás de Aquino foi discutir a Questão dos Universais.


E aí? Há soluções?



Se Aristóteles pudesse responder às interrogações dos comentadores, é quase certo que ele responderia que está a examinar coisas e não apenas palavras, isto é bem claro quando ele faz a diferenciação entre ser predicado de algo ou estar em algo, assim como ele discorre na caracterização da substância, demonstrada no trecho supracitado do capítulo 5. Por outra via, Porfírio apresenta uma solução cabível para a 1ª ambiguidade: “Por que como as coisas são assim são as palavras que as representam”. Aristóteles está classificando os tipos diferentes de seres existentes e utiliza as diferenças entre uma expressão linguística e outra para diferenciá-los.




A solução para a 2ª ambiguidade advém da solução da 1ª, isto é, já visto que Aristóteles está a classificar tipos de seres, então não interessa para ele se eles estão na posição de sujeito ou de predicado. Essa discussão surge pelo uso, por parte dele, da expressão “predicado” para relacionar a substância primeira com os seus atributos que, como vimos, dependem dela para existir. As diferenças entre as suas respectivas categorias expressam isso quando ele diz: “Isto é homem, “isto é branco”, etc. Porém esta interpretação acaba por restringir, e muito, o que Aristóteles quer ter em vista: “O branco é uma cor”, “A justiça é uma virtude”, “A virtude é uma disposição”, etc.  


As pesquisas...


Continuarei as pesquisas, pois como sabemos estudar um filósofo e compreendê-lo não é uma tarefa imediata e, também o conhecimento não se dá por improviso. Ainda mais em um conjunto tão complexos de obras como a de Aristóteles. É mesmo comum as pessoas pegarem mais gosto pela leitura de Platão, devido a uma escrita digamos “mais suave”, visto que os textos aristotélicos, em boa parte são anotações de aula, por isso seu caráter mais complexo. Mas, lembremos: nenhum filósofo, por questões tão parcas como essas, deve ser posto em detrimento em relação ao outro.

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2 comentários:

  1. Olá, Daniel,

    A respeito da primeira ambiguidade, a teoria linguística de Ferdinand Saussure pode nos ajudar a pensar melhor a relação entre palavras e coisas, esclarecendo assim se o Estagirita estava a trabalhar sobre símbolos ou através deles. Apesar de Saussure ter se preocupado bem mais em montar os fundamentos epistemológicos de uma nova ciência, as categorias trazidas por ele podem nos ajudar bastante nessa questão. Primeiro, em uma de suas clássicas dicotomias, Saussure postula que o signo linguístico é montado pela relação entre significado e significante. Significado seria a coisa ou conceito expresso pelo significante. Assim, este segundo diz respeito somente à expressão (os fonemas /p/ e /a/ da palavra “pá”, por exemplo”) ao passo que aquele representa o conceito expresso. Ambos são termos de um juízo sintético que produz o signo linguístico, portanto, para invocar o conceito devo recorrer ao significante. Tendo isso como algo necessário, podemos perceber porque a falta de significantes no grego clássico, ou dispositivos linguísticos como você bem usa no texto, produziu a segunda ambiguidade. Ora, se na língua grega não havia um significante-morfema similar ao “-idade” da língua portuguesa – produtor de substantivos abstratos –, como podemos saber se, quando Aristóteles fala em “homem”, está a designar uma abstração? Dada as intenções de Aristóteles em propor um modelo que resolvesse os problemas da Teoria das Formas de Platão, é mais provável que esteja realmente a falar de abstrações quando pensa em substância.
    Seu texto trouxe questões interessantes e aguardo mais sobre o assunto,

    Cássio Vasconcelos

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    1. Muito plausível o seu comentário, Cássio Vasconcelos! Estou aqui fazendo a leitura dos dois primeiros capítulos da primeira parte do "Curso de Linguística", do Saussure. Abraços! Daniel.

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